segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A revolta dos escravos

Certo navio negreiro navegava de S. Tomé, onde carregara a sua carga sombria, para Salvador no Brasil, em anos de mil e seiscentos.

Em alto mar, pleno Atlântico, no dia de Natal, os escravos revoltaram-se em motim, dispostos a acabar de vez com o seu estado de miséria imposta.

Suicidaram-se todos. O capitão do navio e a tripulação ainda tentaram convencê-los a não fazerem isso mas não foram capazes.

E acabou-se o sofrimento daqueles homens.

O capitão ao ver-se falido suicidou-se também.

A tripulação lançou-se numa guerra fraticida pela posse do navio. Morreram muitos, sobraram três.

Os três que sobraram não eram suficientes para manobrar o navio e tiveram de contentar-se com a ideia de o ver afundar-se numa noite de temporal, seiscentas milhas a sudoeste da costa da Serra Leoa.

Era noite de Ano Novo.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A espada de D. Afonso Henriques

Certo feirante tinha uma espada à venda. Dizia que era a espada de D. Afonso Henriques.

Era grande, pesada, luzidia.

Um cliente interessado em antiguidades abeirou-se da barraca e começou a ver e a fazer perguntas.

(…)

- Diz o meu amigo que esta era a espada do D. Afonso Henriques?

- Sim senhor! – Diz o feirante. – É um orgulho para mim ter uma peça dessas para vender. Aliás, só a vendo porque tenho as minhas dificuldades; porque senão guardava isso para sempre… É uma beleza, não acha?

- Sim é bonita… - Dizia o cliente duvidoso. – Mas está com um ar tão novo…

- O cabo foi trocado! – Avançou o vendedor. – Há uns anos o antigo dono trocou o cabo antigo por este aqui, que o outro tinha a madeira estragada do caruncho.

- Pois… Mas a lâmina também parece nova…

- Nova? Deixe lá ver… - O vendedor pegou na espada e começou a observar com atenção. – Sim ela está em bom estado… Mas acho que não é nova. Espere um bocado para eu confirmar…

O vendedor pegou no telefone e ligou para o antigo dono da espada. Conversou um bocado e por fim desligou.

- Não é nova não! – Diz com um enorme ar de satisfação. – Já não é a primeira, foi trocada no tempo das invasões francesas por um general que foi dono dela. Mas não é nova claro!

O cliente estava cada vez mais com dúvidas.

- Então quer dizer… Esta é a espada de D. Afonso Henriques, excepto no facto de ter levado uma lâmina nova e o cabo ter sido trocado…

- Exacto. Foi alvo sempre de excelente manutenção.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Prudência

O F. e o T. eram amigos de longa data, daqueles que se conheciam desde miúdos, colegas de escola e vizinhos, que brincavam na rua e passavam muito do seu tempo em casa um do outro.

Com o tempo cresceram, como é natural. E foram para a universidade.

Certa vez, por alturas do ano novo, combinaram juntar uns amigos e fazer uma festa de reveillon. Assim se fez, e foi uma grande festa, com muita gente, e a noite correu animada para todos. Foi uma bela festa.

O nosso amigo F. andava nessa altura a ter uns encontros esporádicos com uma tal R., filha de uns amigos dos pais. Nada de compromissos, digamos, davam umas saídas, divertiam-se um bocado. E resolveu convidá-la para a tal festa de fim de ano.

Quando a R. e o T. foram apresentados houve, imediatamente, aquela descarga eléctrica que acontece muitas vezes entre as pessoas que sentem que há ali qualquer coisa que os vai puxar um para o outro.

Falaram muito, riram-se, beberam, dançaram, e às tantas o nosso amigo T. beija a R., num lugar absolutamente à vista de todos.

A noite acabou. Encontraram-se mais tarde, e foi uma grande paixão que durou meses.

O tempo passou e, poucos anos mais tarde, T. desafia F. a ir para Lisboa uma noite para tomar parte num jantar de amigos, com saída a seguir, enfim, uma noitada.

O nosso amigo F. apareceu acompanhado de uma tal R., que conhecera não se sabe bem onde, e com quem mantinha uns encontros esporádicos. Nada de compromissos, digamos, davam umas saídas, divertiam-se um bocado.

Foram jantar todos juntos, com outras pessoas também, e desde logo se notou que entre o T. e a R. tinha acontecido aquela descarga eléctrica que acontece muitas vezes entre as pessoas que sentem que há ali qualquer coisa que os vai puxar um para o outro.

Saíram por Lisboa, foram para “O Barco” onde se deu uma cena que poucos viram, qualquer coisa relacionada com o T. pedir um cigarro a R., ela gracejar com qualquer coisa, e ele, num acto dramático, atirar o cigarro acabado de acender borda fora e virar-lhe a cara e deixar de lhe falar.

Foram ainda para Alcântara, para o Garage, e só lá dentro voltaram a falar. Quando a noite acabou é que os amigos os procuraram e foram encontrá-los num canto escuro da discoteca a comerem-se desalmadamente, como se não houvesse amanhã.

A noite acabou. Encontraram-se mais tarde, e foi uma grande paixão que durou meses.

Hoje ainda são amigos. No entanto, uns anos mais tarde F. resolveu casar-se com uma colega de trabalho. Ainda esteve em dúvida, mas achou que era mais prudente não convidar T.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

O almoço

Entrámos ordeiramente no restaurante, cheio de gente, que tinha aberto aquele fim-de-semana devido à ocasião especial proporcionada pelo festival.

Sentámo-nos e uma criança veio pergunta do que seríamos servidos. Pedimos.

Trouxeram-nos o prato principal, que comemos, depois as entradas. A criança veio saber o que queríamos beber e aproveitámos para pedir as sobremesas.

Trouxe-nos as bebidas e esqueceu-se das sobremesas.

Deram-nos as sobremesas ao balcão enquanto ordeiramente pagávamos.

Fomos comer as sobremesas, a acompanhar o café, na esplanada ao lado.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Sinceridades

- Eu sou sincera… minto muitas vezes.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Desobediência

- Resistência passiva?

- Sim!

- “Sim” como?

- Como na Índia. Desobediência civil!

- Mas isso resultou bem contra os ingleses…

- E então? Estes são melhores?

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A curiosa história de N.

Durante meses N. planeou o seu futuro. Estava tudo decidido, queria tirar um curso superior de matemática.

Tendo acabado os exames do liceu, e sendo as suas notas suficientes para entrar em qualquer curso que pretendesse, dirigiu-se à Faculdade de Ciências para se matricular no curso que escolhera.

Foi com surpresa que recebeu a notícia que o curso que pretendia teria a duração de cinco anos, em vez dos quatro anos que pensava. Naquele estado de confusão momentânea passou-lhe pela cabeça que se a opção era tirar um curso de cinco anos, então iria tirar um de engenharia que era de seis.

Dirigiu-se ao Instituto Superior Técnico, olhou para a lista dos cursos existentes, tirou aqueles que não lhe cheiravam bem e matriculou-se em Engenharia Química.

E assim se decidiu um trajecto de vida numa manhã.

Os três dês

Sentado na sua secretária, o jovem J. esboça um sorriso maquinal para o cliente que se segue.

Trabalha num banco conhecido, onde tem funções que se prendem com a negociação de contratos de crédito mal-parado com clientes em dificuldade.

Com a prática aprendeu a poupar tempo.

- Bom dia! Desemprego? Doença? Divórcio?

O livro

- Não sei o que lhe oferecer…

- Porque não um livro?

- Ela já tem um.

domingo, 10 de agosto de 2008

O mito de Pandora

O caranguejo era um tipo interessante. Bom conversador.

Foi ele que lhe contou a história de Pandora, a primeira mulher, feita pelos deuses para castigar os homens. Ela tinha todas as qualidades, dado ter sido criada por todos os deuses em conjunto.

Contou a história da caixa que Pandora possuía, onde estavam guardados os males do mundo, e que veio a ser aberta para nos castigar.

- E que males eram esses? – perguntou interessado.

- Os males dentro da caixa? Eram a doença, a velhice, a mentira, a loucura, o trabalho e a paixão.

- Como vês está tudo na mesma… - continuou o caranguejo sorridente.

Mudar?

- Mudar de praia?

O caranguejo olhou em volta e apreciou a paisagem pensativo.

- Posso mudar. Já tenho mudado. Mas já descobri que não é a praia onde vivo que faz a diferença; o que realmente conta é a forma como ocupo o meu tempo.

Abundância

- E de que vale? – perguntava o caranguejo – as pessoas terem tantos bens materiais que não usam? Coisas que com o tempo só perdem o valor?

A praia

Sentado no areal da praia deserta olhava o mar à sua frente e meditava na curiosa conjugação de factores que transformam certas praias lugares superpovoados e procurados, enquanto outras, como esta, lugares vazios de gente.

Da areia surgiu um caranguejo vermelho. Conversaram um bocado. O caranguejo prefere as praias desertas. Diz que nas outras já lhe aconteceu ser pisado.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Liberdade

- Estou Peter?
- Oi…
- Lembras-te de te ter falado daquele fulano com quem tenho estado?
- Sim…
- Ando tão mal…
- Então?
- Estive com outro…
- Hmmm…
- Sinto-me tão mal…
- Sentes?
- Sinto… Não sei o que quero… Estou de rastos… Arrependida… Não sei o que quero.
- Não deves estar à espera que seja eu que te diga o que deves querer…
- Não… Sei lá… Mas estou tão confusa…
- Só vais deixar de estar confusa quando deixares de dar importância ao que fizeste. Aí poderás saber o que queres.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Os benefícios do desporto

Muita gente que conheço pratica desporto. Quero dizer, entregam-se a uma actividade física mais ou menos violenta de vez em quando, ao fim de semana, ou em certos dias da semana em que combinaram com os amigos ir jogar futebol, ou outra coisa qualquer.

Com frequência tenho encontrado essas pessoas com lesões graves, resultantes da prática desportiva mal medida. São as roturas de ligamentos, as costelas partidas, os entorses, as luxações, etc.

Contaram-me um dia que Winston Churchill, já velho, foi interpelado por um jornalista que lhe perguntou qual o segredo da sua jovialidade e bonomia na sua idade avançada.

- O segredo é o desporto… - terá respondido sorridente – nunca fiz…

A caixa de Pandora

Muitas vezes sofremos, por causa de problemas que não conseguimos identificar, as nossas acções ficam alteradas, e as nossas capacidades diminuídas.

Perdemos tempo a tentar encontrar o problema que nos afecta. Depois de identificarmos um problema somos levados a pensar que o problema nem é bem aquele, mas sim outro mais antigo e anterior, ou outro completamente diferente. E, há medida que pensamos e revemos as coisas, não conseguimos identificar problema nenhum; limitamo-nos a rever todas as coisas más pelas quais já passámos. E sofremos muito.

Às vezes temos a sorte de encontrar alguém que nos abre os olhos e nos faz ver que o cérebro é uma caixa de Pandora. O “problema” não é nenhuma coisa em particular, algo que nos tenha acontecido. O problema é que a caixa de Pandora está aberta, e tem de ser fechada. As coisas antigas não se resolvem, esquecem-se.

Curiosamente, e sendo estes princípios fáceis de entender, o senhor P. foi confrontado com esta realidade num dia da semana. No dia seguinte telefona-lhe uma pessoa amiga a sofrer com certas coisas que lhe aconteceram, a pedir ajuda e conselhos. E a coisa deve ser verdade, porque o único bom conselho e que ele teve para lhe dar foi que esquecesse tudo, que fechasse a caixa, que só então poderia andar para a frente.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O dia de pesca que não foi

A senhora L. tinha planeado uma série de actividades para certo domingo, que passavam por ir às compras, arrumar um bocado a casa, arranjar uma torneira que se tinha estragado na casa-de-banho, e mais algumas coisas. Para isso estava a contar com a ajuda do marido, o senhor P.

Pelas seis da manhã de domingo sentiu o senhor P. a levantar-se da cama, a ir tomar banho, vestir-se alegremente e bem disposto…

Fingiu que continuava a dormir, e só fez menção de abrir ligeiramente os olhos quando o senhor P. se acercou da cama, e lhe deu um beijo para ela acordar.

- Querida… vou passar o dia fora, combinei um dia de pesca com os meus amigos. Volto à noite.

- Vais pescar?

- Sim… foi o que combinei… Há algum problema?

- Não… - disse ela, continuando a fingir-se sonolenta – Nada especial. Tenho andado para te dizer, mas não sabia como… Tenho tido às vezes umas vontades repentinas e violentas de fazer mamadas… Enfim… Era talvez bom que estivesses por perto…

E virou-se para o lado e deixou-se adormecer.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

O pêndulo perfeito

O pêndulo perfeito, se existisse, seria uma bola de massa perfeitamente determinada, cuja determinação exacta é, na prática, impossível, ligada por um fio sem massa – coisa que não existe – e de espessura infinitamente pequena, o que não passa de uma concepção, a um ponto fixo no espaço e actuado por um campo gravítico uniforme.

O pêndulo perfeito, se existisse, poderia ser deslocado do seu ponto de equilíbrio e ficaria ad eterno a baloiçar, a baloiçar, a um ritmo sempre igual, sempre com a mesma amplitude de movimento, até ao fim dos dias.

Mas o pêndulo perfeito não existe. O que existe é o pêndulo real; e esse baloiça, de facto, mas a um ritmo que se vai perdendo no tempo, e com amplitudes cada vez menores, devido ao atrito provocado pela passagem da atmosfera junto ao seu corpo e à energia que se dissipa no fio, que por não ter espessura infinitesimal se deforma continuamente provocando a diminuição do movimento à medida que a energia do conjunto se perde sob a forma de calor produzido pelo atrito interno das partículas atómicas do fio.

Além disso, se tivermos um pêndulo qualquer, por muito bom que ele seja, a baloiçar continuamente, o fio acabará por partir um dia devido à acção corrosiva do ambiente e da fadiga provocada pelo movimento. Se o mantivermos parado, ele acabará por se estragar na mesma devido à corrosão.

Esta conversa ilustra pouca coisa. Apenas que o que se usa gasta-se; e o que não se usa estraga-se.

E que a perfeição não existe.

Diâmetros

- Confias em mim?
- Confio.
- Confias porquê?
- Nunca me deste razão para não confiar…
- Tu não confias? – Continuou.
- Não…
- Alguma coisa que eu tenha feito?
- Não confio em mim. Porque havia de confiar em ti?

Tudo o que tu quiseres

Sentaram-se mais ou menos a meio da sala do cinema. O filme era para crianças. Enfim, mais ou menos. A história era quase infantil, mas nem tudo o era; o final não era feliz.

Saíram com os olhos em lágrimas e foram aliviar o espírito a ver montras, comeram qualquer coisa, espreitaram a loja dos azeites, os livros.

Enfim, pôs-se a pergunta que pairava no ar:

- Que vamos nós fazer?

- O que quiseres. – Respondeu ele sorridente. E reforçou brincalhão. – Faço tudo o que tu quiseres…

Ela sorriu, num certo tom de ironia amarga.

- Não queiras sequer saber o que seria isso tudo…

Depois pensativa concluiu.

- Se toda a gente fizesse tudo o que quisesse, este lugar seria muito perigoso…

terça-feira, 22 de julho de 2008

Sim, é estranho

"(It's) Strange how people who suffer together have stronger connections than people who are most content..."

Bob Dylan

sábado, 19 de julho de 2008

Suecos

Swedish... they all fuck...

Yeah... - Dizia ela, sem compreender muito bem.

domingo, 13 de julho de 2008

Solitude standing

Saiu à tarde para a rua, na disposição de ir tomar um café. A rua estava deserta.

No café encontrou o vazio e a ausência. Um casal de namorados que costuma andar por ali.

Conversaram um bocado e decidiram, todos juntos, dirigir-se a um bar próximo que encontraram com um único cliente ao balcão, que fumava uns cigarros e bebia umas cervejas, e que era o próprio empregado do bar.

Ali estiveram, até que decidiu que era tarde e tinha de se ir embora.

Foi para casa, fazer o jantar, ao encontro da companheira de sempre, a solidão.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Salta

- Salta!
- Salto?
- Salta…
- Mas está escuro!
- Tens medo do escuro?
- Não…
- Se calhar tens…
- Não tenho nada!
- Deves ter… Assim parece…
- Não tenho juro!
- Deixa lá, vamos embora, não saltes…
- Não salto porquê? Para tu dizeres que tenho medo do escuro?
- A sério, deixa lá isso, vamos…
- Não mandas em mim, se eu quiser salto!
- Não és capaz…
- Sabes que mais? Salto! Salto mesmo!

Saltou.

O marquês recostou-se e acendeu um cigarro, enquanto ouvia o nadar ofegante no fundo do poço.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Errar é humano

Errava tanto, mas tanto, de forma tão clamorosa, que um dia, ao querer errar de propósito, acertou.

Mel

Olhava para o frigorífico de porta aberta e não se decidia. A pessoa estava indecisa, sem saber bem que frasquinho de compota, ou doce, deveria escolher.

A outra chegou-se por trás e segredou-lhe suavemente ao ouvido;

- Sabias que o mel é espermicida?

A equação

Depois de passar muitos anos de estudo, observação e experimentação das coisas, um certo cientista tinha formado um conjunto de equações que, resolvidas em conjunto, deveriam fornecer o modelo teórico e perfeito para descrever certo fenómeno.

Mas alguma coisa estava errada, alguma coisa faltava ali, uma equação qualquer para completar o sistema.

Muitas noites passou em claro, bebeu muitos cafés, fumou muitos cigarros, pensou muito. O que lhe faltava devia estar por aí em algum lado, mas não estava capaz de ver o que era.

Foi numa conversa com um estudante que a solução apareceu. Essa pessoa fez-lhe notar que estava de facto impressionado com a elegância e profundidade daquelas equações belas e originais, mas que não estava a encontrar ali a equação básica que lhe tinham ensinado como sendo fundamental, porque representa certa lei da natureza à qual não é suposto fugir.

Claro que sim, “que estupidez a minha!”, pensou o cientista; o que lhe faltava era o princípio de tudo, o que lhe tinham ensinado na escola há muito tempo atrás.

terça-feira, 8 de julho de 2008

A janela

Certa pessoa comprou uma casa velha numa zona antiga de Lisboa e pensou que teria conveniência em abrir uma janela em certa parte da casa.

Falou com um arquitecto seu amigo, no sentido de saber como deveria proceder para obter a autorização da câmara municipal para fazer tal alteração à fachada do prédio.

O arquitecto disse-lhe, desde logo, que tal seria impossível; a câmara nunca iria aprovar tal alteração por aquela zona ser considerada de interesse especial.

Fizeram a janela sem pedir nada a ninguém. Depois de feita, tiraram umas fotografias e compuseram um requerimento à câmara a pedir autorização para tapar aquela janela, com a consequente alteração da fachada.

Da câmara receberam uma recusa liminar; “Não, essa janela não pode ser fechada, porque faz parte de uma fachada de um prédio numa zona considerada de interesse arquitectónico especial…”

"O cérebro transpira..." (cont.)

É claro que é possível, também, que o problema não esteja na filosofia mas sim numa qualquer pequena coisa mais prosaica...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

"O cérebro transpira..."

A filosofia é uma actividade interessante e perigosa. Se calhar é por ser perigosa que é interessante. Ao caminharmos pelos carreiros do pensamento filosófico, frequentemente, deparamos com bifurcações no caminho que nos levam em direcções diferentes e opostas. Seguindo por um lado seremos levados para o alto de um monte onde poderemos ver as coisas com mais clareza, seguindo pelo outro desceremos às profundezas da terra; e se não tivermos cuidado pode ser que fiquemos por lá. O problema é que os caminhos não estão assinalados com tabuletas para podermos escolher.

Muito embora não seja dado a depressões - pelo menos graves nunca tive - existe em mim um pano de fundo melancólico e trágico que se manifesta, normalmente, de forma positiva, num humor ácido e transgressor, mas que deixa, ainda assim, que os meus dias corram bem, confiante nas minhas capacidades.

Ciclicamente acontecem episódios de negativismo. Resultam de levar até longe as cogitações filosóficas e de enveredar, de vez em quando, pelos caminhos que levam à entrada dos infernos. São situações complicadas e que exigem autodomínio para não me deixar prender para sempre. Às vezes sou eu mesmo que consigo manter a cabeça fria e parar, outras vezes são outras pessoas que me puxam para trás e me trazem de novo aos sítios donde posso observar as coisas sem me perder.

Desde há muitos meses que tenho vindo a trilhar um caminho que sendo profundamente enriquecedor e cheio de observações interessantes é, também, dos tais muito perigosos.
Nestes dias aconteceram coisas que me fizeram parar para pensar e perceber que, mais uma vez, tenho estado a abordar a tal linha amarela da prudência, que é suposto não ser passada, mas que eu vou colocando cada vez mais à frente, cada vez que a passo um bocadinho para ir espreitar o que há para lá da linha, que demarca a fronteira entre a parte do caminho que já explorei e conheço, e a parte que ainda não visitei.

Nestes dias senti, e foi-me dado a sentir, que é hora de aliviar a distância dos infernos e voltar mais para trás para digerir o que me foi ensinado. Esse caminho permite-me, cada vez que o faço, desfazer e pensar de novo a equação, e simplificá-la tirando-lhe termos redundantes; é como que uma piscina de águas turvas onde mergulho ciclicamente para voltar a emergir lavado de muitas coisas que me toldavam o cérebro; mas sempre mudado, preparado para voltar a seguir outros caminhos que, mais cedo ou mais tarde, me poderão trazer de novo à piscina para mais uma lavagem nas águas infernais.

Nestes dias tornou-se evidente que esta zona da linha amarela tem efeitos negativos e me está a impedir de desfrutar de forma plena das coisas boas e de uma pessoa bela que estes tempos me têm dado a conhecer. Eu gosto dela. Desejo-a. E sinto um prazer transcendente quando estou com ela. Mas, em certo momento, não aparento viver esse prazer de forma absoluta e entregue.

Parece ser insegurança; será. Resulta, digo eu agora, do tal caminho que tenho percorrido, que tem sido interessante e didáctico mas que me poderá ter corroído por dentro. É a hora de parar e dar passos atrás, agora tenho a certeza.

Eu sei que vou voltar ali um dia. Aquela linha amarela ainda pode avançar um bocado, e eu quero saber o que se esconde atrás. Mas porque o cérebro transpira quando nos mexemos, como dizia um senhor da “Liga dos últimos”, por agora vou deixar a linha amarela onde está e vou dar uma volta de bicicleta.

domingo, 6 de julho de 2008

Fidelidades

A senhora L. e o senhor T. viviam juntos há já vários anos, nunca se tinham casado mas viviam maritalmente. Não sabemos se alguma vez tinham assumido algum tipo de compromisso de fidelidade, verbal ou tácito, mas o senhor T., com o passar do tempo, habituou-se a uma certa ideia de fidelidade comprometida. Ele não tinha por hábito procurar ninguém, e, tanto quanto sabia, a senhora L. também não o fazia, e como sempre se deram bem, digamos que podemos admitir que fosse uma ideia partilhada por ambos.

Foi com espanto e consternação que um dia chegou a casa e encontrou a mulher enrolada na cama com uma amiga do casal, uma pessoa intima lá da casa, que o senhor T. nunca tinha suposto, nem nunca lhe tinha passado pela cabeça tal coisa, que pudesse ser amante da mulher.

Perdeu a cabeça. Gritou, berrou, praguejou, bateu nas portas e nas paredes, partiu uma mesa na sala, pôs a amiga da mulher fora de casa. O seu espírito consternado viu a sua vida a desmoronar-se, os pressupostos da sua vida de casado postos em causa de repente.

Foi a custo que a senhora L. conseguiu que ele se acalmasse um pouco, o suficiente para poderem falar.

- Eu não esperava… - Dizia o senhor T., desesperado e lívido.

- O que é que tu não esperavas? – Perguntou ela.

- Uma coisa destas! Uma traição destas! Achas normal um homem chegar a casa e encontrar a mulher na cama com outra pessoa? Ainda por cima uma mulher? Se já não gostas de mim ou não queres estar comigo, podias ter dito. Não precisava de passar por esta humilhação!

- Tu não estás a ver bem as coisas. – disse a senhora T. – Quem te disse que não gosto de ti ou que não quero estar contigo? Claro que gosto e quero!

- Gostas o quê! – gritava o senhor T., perdido de todo – Gostas o quê?! Como podes dizer que gostas e queres se eu te vejo na cama com outra!

A senhora L. exasperou-se com a situação.

- Olha lá meu idiota… se eu digo que gosto é porque gosto. Acreditas mais no que vês ou naquilo que eu te digo?