sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O Princípio de Peter

E foi um parto difícil.
O meu pai encaminhou a minha mãe para a única clínica particular de Douglas, na esperança de fugir às listas de espera e de ser mais bem tratada.
A clínica era chic, talvez, não poderemos negar. Mas o médico, que também não era menos, demorava-se no seu chá das cinco, tomado no recato do seu gabinete na companhia das duas enfermeiras mais novas da clínica, que na sua inocência provinciana se babavam na presença do médico, homem feito, quarentão de barba viril, sempre bem vestido e bem falante. Além disso, por ser médico, era idolatrado pelas pessoas do campo e quase todos os dias lhe chegavam a casa produtos de hortaliça fresca, ovos, galinhas, patos, coelhos, e tudo o mais que os seus clientes se conseguiam lembrar, já que muitos eram pessoas do campo sem grande capacidade para pagar as consultas em dinheiro, o que eles compensavam pagando com bens. Sendo assim, e sendo o médico um solteirão convicto, o mais desejado da região, era de todo natural que as duas moças sentissem umas humidades a crescer quando estavam com ele e tivessem reacções de colegial quando o viam passar.
Para além do chá das cinco o médico demorava-se a fumar o seu cigarro enquanto uma das enfermeiras lhe fazia massagens nos ombros e nas costas e a outra lhe lia um trecho de "O Vermelho e o Negro" de Stendhal, que ele gostava de ouvir na voz da enfermeira, tão cristalina e tão excelente leitora.
Quando finalmente se dispôs a ir tomar conta das ocorrências e dos seus doentes, encontrou então a minha mãe que, de tanto esperar, até já lhe tinham passado as contracções e estava desesperada e nervosa por imaginar que, por aquele andar, não só eu não nasceria, como ela iria desta para melhor provavelmente.
O médico assumiu os procedimentos de emergência e conseguiu tirar-me de dentro da barriga da minha mãe usando de uma ventosa que, colocada na minha cabeça, me puxou para fora.
Nasci feio e azulado. Mais um pouco e nasceria morto. A minha cabeça vinha afilada como a ogiva de um míssil intercontinental em virtude do uso da ventosa.
Ao ver-me, a minha mãe só teve tempo de murmurar entre dentes "Que feio! Coitadinho...", e depois desfalecer desmaiada do esforço imenso que foram aqueles momentos.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O solteiro perigoso

O sr. T é o gerente da dependência bancária da minha cidade.
Não terá ainda quarenta e cinco anos. Aparece todos os dias, meticulosamente trajado de fato comprado num qualquer outlet de grande dimensão, e o escanhoado perfeito de quem dedicou trinta minutos da sua manhã a manobrar, com destreza e atenção, a Mach 3 pelas curvas do seu rosto, pelas patilhas milimétricas, e até pelas zonas atrás das orelhas e do pescoço, onde os pelos no seu crescimento vão dando ao homem moderno um certo ar de desleixo e falta de cuidado.
Não é certamente o caso do sr. T, que é o tipo de pessoa que não deixa nada ao acaso.
Quando era mais mais novo esteve tentado a tirar direito, que o pai lhe pagava os estudos mas, num acto de rebeldia e inolvidável audácia, pelo menos à escala da sua pessoa, resolveu deixar de lado uma possível carreira brilhante nos tribunais e dedicar-se à banca. Porque o movimento - o borbulhar do dinheiro - o fascina, costuma explicar às pessoas nas conversas informais, nos almoços de negócios - "o capitalismo é um jogo viciante..." - costuma afirmar entre duas imperiais e enquanto se banqueteia com umas amêijoas à Bolhão Pato.
Tudo na sua atitude é meticuloso. A forma como se veste, como se apresenta, o formalismo profissional com que atende o telefone e até a forma estudada de sorrir.
Mas quem o conhece sabe que por trás do seu bigode de Errol Flynn está um homem que gosta de se divertir. Não é grande conversador, mas nas jantaradas fala com paixão e desenvoltura das grandes questões financeiras e dos negócios do seu banco, como se fossem decisões suas. E quando, duas garrafas de Jameson mais tarde, se dirigem para uma das casas de putas da moda, o sr. T transfigura-se e vem ao de cima a verdadeira personalidade vibrante e erótica dos nativos de escorpião. Em algumas dessas noites, já foi visto a levar duas mulheres para o quarto e até a praticar actos libertinos à vista de toda a gente. Quando se trata de putas, o sr. T sente-se um excêntrico banqueiro milionário.
E nas manhãs seguintes, ao tocar das 8h 30m, é vê-lo a entrar à porta do banco, impecavelmente vestido, de pasta na mão, a cumprimentar toda a gente e a espalhar pelo ar um certo aroma antiquado de Old Spice e de mediocridade.
O sr. T entrou na sala de reuniões com os meus papéis na mão e com um sorriso escancarado.
- Viva Peter! O seu empréstimo para compra de habitação foi pré-aprovado!
Eu fingi um certo ar de contentamento como se isso fosse uma coisa surpreendente e reservada apenas aos clientes especiais do banco.
- Agora - continuou - teremos de esperar pelo relatório do avaliador para confirmar o valor do imóvel e termos então a certeza de estarmos a trabalhar dentro dos valores apropriados para o empréstimo.
- E quanto tempo poderá isso demorar?
- Talvez quinze dias. Eles têm andado um bocadinho atrasados. Mas quinze dias deve ser suficiente, mais quinze dias para vir da central a autorização definitiva. Daqui a um mês deverá estar em condições de fazer a escritura da casa.
A coisa pareceu-me bem e ficámos um pouco a conversar sobre o processo de compra de casa, condições do empréstimo, taxas de juro...
- Diga-me Peter... Vai casar?
- Não. Não estou a pensar casar.
O sr.T olhou-me com um certo ar suspeito de quem lhe tinha escapado algo importante.
- Você nunca casou pois não? Não tem filhos?
- Não. - respondi já surpreendido com aquelas perguntas sobre a minha vida pessoal.
- É que isso traz-nos uma pequena contrariedade...
Eu olhei para ele sem perceber e fiquei na expectativa.
- É que nesse caso o Peter vai precisar de fiador... - foi dizendo o sr. T, chegando-se mais de perto, em jeito de confidência.
- Fiador? - perguntei eu no mesmo tom.
- Sim... fiador... não é nada pessoal, compreenda... são regras do banco...
- Mas... regras? Regras porquê? Porque é que eu, pessoa formada e de boa saúde, preciso de ter fiador? E além disso onde é que eu vou encontrar um fiador nos dias de hoje? Hoje não há condições para alguém de inteligência mínima ser avalista! Vocês dos bancos reservam-se a todos os direitos! É a reserva de propriedade da casa... Temos de pagar seguro para garantir o pagamento do empréstimo... Querem fiador para quê? As garantias que têm não vos chegam?
O sr. T fez um ar de quem lamenta.
- Compreenda Peter... Eu não fosso fazer nada... Se você fosse casado...
- Se fosse casado era mais honesto? Ou tinha mais condições para pagar? Não percebo.
O sr. T resolveu-se a aventar uma explicação que não estava habituado a dar.
- Não é isso... Veja se entende. O banco considera as pessoas solteiras um investimento de maior risco. São pessoas mais independentes e imprevisíveis. Tanto podem estar aqui hoje, como amanhã podem fazer viagens para o Brasil, se bem me entende...
Eu olhava para ele com ar de evidente reprovação.
- Os solteiros - prosseguiu - são pessoas difíceis de prever e de seguir. São pessoas que não têm cá ninguém que os prenda. Podem com mais facilidade dar um tiro na cabeça e deixar esta vida, por exemplo. E quem fica a perder? O banco...
Eu fiz um ar de quem estava a seguir o raciocínio.
- Sim, entendo o que quer dizer. Para o banco, os solteiros são feitos da mesma massa de que são feitos os bombistas suicidas...
- Sim... No fundo é isso... - assentiu o sr. T, contente por me ter feito ver o problema e a óptica do banco.
- Sim é verdade... - respondi com ar de quem partilha a idéia. E chegando mais para o pé dele - ...mas então lhe digo que, sendo assim, será mais prudente para a sua saúde e a dos seus colegas que me baixe os juros e deixe de exigir fiador...

sábado, 3 de novembro de 2007

O primeiro dia do resto da vida.

Que fique registado que hoje encontrei o meu primeiro cabelo branco.
Não que isso me entristeça. De facto não estou assim tão mal.
Conheço muitos homens da minha idade que estão cheios deles, resultado da vida conturbada, do casamento, dos filhos.
Eu, solteiro que sou, celibatário convicto, e que gosto de crianças desde que sejam dos outros , conheci hoje o meu primeiro cabelo branco. Considerando que continuo sem barriga e sem os demais sinais de velhice precoce que tantos amigos ostentam, quase que daria para celebrar.
Talvez beba um whiskey hoje em honra deste cabelo.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Pão por Deus

Talim Talão!
- Quem é?
- Pão por Deus!
- Quem?
- PÃO POR DEUS!!
- Ah! Não quero obrigado!
- Diga?
- Ainda tenho! Obrigado!
- ...