segunda-feira, 30 de junho de 2008

Girls in their summer clothes

Dizia uma moça brasileira para outra:

- Você já viu? Esta gente aqui? São tão “chiqui” no Inverno… mas no verão… parece pobreza, né?

O bailarino

O homem entrou na repartição pública com o ar gingão e ritmado de quem vem a ouvir música por dentro. Era um tipo dos seus quarenta e tal, um bocado suado do calor e com uma camisa verde clara de mangas curtas por fora das calças, daquelas que se usam a disfarçar a barriguita que já vai num estado avançado na protuberância.

Entrou na sala a gingar e estacou por um momento numa pose teatral, bem à frente das pessoas sentadas à espera da sua vez. Depois começou a olhar em volta, para todos os pontos da sala, como que à procura de qualquer coisa, enquanto com as mãos e com os pés executava uma curiosa coreografia ondulada, como que apontando para sítios vagos, voltando atrás constantemente, para logo depois voltar a apontar para outros sítios, com o corpo a dançar ao som dos Bee Gees.

Dentre as pessoas que observavam, sem perceber bem o que se passava, uma senhora ucraniana percebeu que talvez fosse melhor dar um rumo àquele homem e começou a apontar para a maquineta vermelha na parede onde se podem tirar os bilhetes que ordenam o público.

Num momento e já várias mãos apontavam para o desenrolador dos bilhetes, mas o homem parecia não perceber e continuava a dançar, com os olhos a percorrer a sala toda, desde o relógio na parede do fundo da sala até às pernas das senhoras sentadas.

De repente uma voz eleva-se do fundo da plateia e diz:

- Oh homem! Está aí à frente pá! A máquina dos números está aí mesmo à frente!

O outro lá acordou da transe, fez um gesto com as mãos como quem diz “Eureka!” e chegou-se à frente para recolher um papelinho da máquina.

Foi sentar-se enquanto com um sorriso se dirigia ao homem do berro:

- Está aqui mesmo à frente, não estava a ver!

- Pois… - Concordou o outro – Eles puseram isto num sítio que não se vê bem.

domingo, 29 de junho de 2008

O princípio de Peter

Fumar um cachimbo ao vento tem as suas dificuldades práticas. A atmosfera em movimento faz com que o cachimbo arda mais depressa do que seria normal numa massa de ar estática e faz com que o cachimbo possa aquecer demais ou que o tabaco queime de forma irregular. É melhor um cachimbo de fornilho estreito e fundo, para que a área do tabaco em combustão seja menor, e diminuir de alguma forma estes inconvenientes.

Havia em Douglas um individuo que gostava de se dirigir às falésias, normalmente em dias nebulados, para fumar longamente um já velho mas magnífico billiard de linhas soberbas e discretas, que encontrara um dia a preços ridículos numa feira de velharias, no seu lugar favorito que era uma varanda sobre o mar, talvez cem pés acima da linha de água, e cujo o acesso difícil se fazia apenas a pé ou a cavalo ao longo de cerca de uma milha de carreiros estreitos e sinuosos, entre urzes encravadas nas pedras irregulares do terreno calcário.

Nunca se soube bem quem era aquele homem e que ocupação tinha. Aparecia raramente na cidade e vivia numa casa isolada nas redondezas. Poderia ser escritor, era de poucas palavras e não gostava muito de sair. Há quem se lembre de uma mulher, muito mais nova do que ele, escandinava talvez, que viveu com ele alguns anos. Ela saía, era vista na cidade, principalmente na praça dos frescos, e chamava a atenção pela beleza serena e o olhar profundo e claro.

Mas dizem que há já muito tempo que essa senhora desapareceu, não foi mais vista, e o indivíduo de que falamos terá vivido desde então apenas só. Não se lhe conheceu mais ninguém.

Os raros passeios que dava eram até à falésia. Caminhava lentamente pelos carreiros, apreciava e ar húmido e marinho que respirava de narinas e peito bem abertos. Levava o tempo que fosse preciso para chegar à varanda donde tinha uma visão imponente do mar em tons de verde e cinza a fustigar as falésias no seu movimento perpétuo de água e espuma que se eleva alto para depois cair num fragor surdo que parece vir das entranhas da terra.

Sentava-se.

Costumava ficar a olhar para a paisagem grandiosa e rude à sua volta o tempo que fosse necessário até voltar a sentir a respiração regulada e o coração no seu bater normal.

Começava então o procedimento minucioso e propositadamente demorado de preparar o cachimbo para ser fumado. Fumar cachimbo é um acto de ociosidade deliberada. Não há um qualquer momento da sua preparação e posterior desfrute que proporcione pressa e que possa ser feito num sentimento de urgência. É uma afronta pessoal do individuo contra a agitação da vida.

Começa-se por observar minuciosamente o cachimbo; aprecia-se a cor, o aspecto, o polimento, toca-se, sente-se a textura inconfundível do briar na palma da mão e nos dedos, e procuram-se os sinais de que o tempo tem passado sobre o nosso fiel companheiro.
Depois raspa-se, limpa-se o fornilho, que na verdade já foi limpo no fim da utilização anterior, dos restos imaginários de alcatrão e tabaco queimado. Sopra-se, cheira-se, aprecia-se o aroma, limpa-se, mas nunca, nunca, nunca se deve bater um cachimbo.

Quando estamos finalmente convencidos de que o cachimbo está limpo, tiramos uma porção de tabaco que se põe ao ar. Devemos separar os filamentos e procurar defeitos ou corpos estranhos que possam prejudicar a qualidade do fumo e, neste tempo de observação minuciosa, damos também oportunidade a que a humidade do tabaco se possa libertar, ficando o tabaco um pouco mais seco e uniforme, o que fará com que queime de uma forma mais agradável.

O enchimento é sempre uma tarefa delicada. Normalmente faz-se por camadas sobrepostas. Enche-se o cachimbo até cima com tabaco e calca-se até ficar a ocupar talvez metade do volume do fornilho. Depois volta-se a encher o espaço que sobra e calca-se de novo. Volta-se a repetir a tarefa até o tabaco encher por completo o fornilho e apresentar uma estrutura macia mas consistente.

Quando temos o cachimbo preparado, estamos então em condições de nos recostar e desfrutar do primeiro fumo. O primeiro fumo é um fumo preparatório, serve só para preparar o tabaco para uma queima regular. Acende-se com um fósforo ou um isqueiro e espalha-se uma chama abundante por toda a superfície do tabaco. Chupa-se, lentamente, sempre lentamente, e deixa-se que a brasa se apague. Calca-se de novo a cinza sobre a sua cama de tabaco e dá-se fogo novamente. Poderemos então desfrutar de um fumo lento e regular, feito ao ritmo das horas vagas e das ondas a rebentar na falésia. Uma hora talvez, em que o homem se remete ao mais profundo de si mesmo num acto de puro egoísmo e prazer.

Havia muitos anos já que o tal senhor fazia aquele caminho até à falésia. Já muitas vezes fizera os carreiros pedregosos e conhecia as pedras de cor.

Sentou-se muitas vezes por ali, a fumar e a ver o mar, enquanto dentro de si formava uma ideia que foi crescendo e fortalecendo com o tempo, até tomar a forma de uma decisão inabalável. "Não".

Não, ele não iria morrer de velho e senil. Se não lhe tinham dado a escolher o nascer ou não, nem o dia, nada, então sentia-se no direito de escolher o dia do fim. É uma questão de justiça. Com o tempo foi formando a ideia que chegaria um dia em que olharia para si mesmo e decidiria se ainda havia razões para continuar, se as suas condições físicas e psíquicas justificavam mais uma viagem de volta a casa.

Hoje sentou-se, como fez já muitas vezes, e acendeu o cachimbo. Nada o prende, nem ninguém, agora já não. Fumou o cachimbo e deixou-se ficar a olhar o mar duro e bruto que vai moendo as rochas lentamente. Hoje não lhe apetece ir para casa, não lhe apetece fazer os carreiros das urzes de novo. Respira fundo. A luz é clara. O ar está fresco, numa atmosfera suspensa. Respira fundo, enquanto limpa o cachimbo minuciosamente. Guarda o cachimbo num bolso interior do casaco enquanto se levanta e observa a espuma a rebentar no fundo rochoso. Respira fundo. Olha para o caminho das urzes. Respira fundo, e precipita-se no vácuo.

sábado, 28 de junho de 2008

De certeza

Sejam modelos de gases perfeitos.
Estatísticas e sondagens.
Boletins meteorológicos, medições feitas com micrómetro, temperaturas onde quer que seja.
Sejam guerras, revoluções, mísseis intercontinentais, pontos de pouso na superfície de Marte.
Sejam investimentos na bolsa, compra e venda do que quiser, cisão do átomo, ou se vamos ou não ao café.
Sejam horários de comboios, os encontros dos amores, ou se chegamos vivos a casa.
Seja tudo.
A única certeza que temos é que a todas as coisas está associado um certo grau de incerteza.

O stress

A hora era a combinada. O pintor apareceu na oficina, que é ao lado de casa, ainda a soluçar do almoço comido à pressa.

- Então? – Dizia ele bem disposto – Vamos ver o carro? Eu não te disse? O almoço é coisa de dez minutos, um quarto de hora, vá…

- Vamos… Mas olha que isso faz-te mal…

- O quê? O almoço?

- Sim… assim comido à pressa… dá cabo da saúde.

- Eh pá… mas eu não sei comer de outra maneira, foi sempre assim. Se a comida se come em dez minutos, porque haveria de levar mais tempo? Estás a ver…

- Mas faz mal! Dá cabo do estômago por exemplo. E comer devagar é daquelas coisas boas para combater o stress. Se escolheres comer devagar, comer em mais tempo o que comes em dez minutos, as coisas sabem-te melhor e é um período bom para descansar e organizar ideias.

- Pois… Mas sabes que isso do stress é coisa a que não consigo fugir. Desde os onze anos! Desde os onze anos ó pá! Desde que trabalho sempre fui assim. E sabes uma coisa? Eu acho que não sei viver sem stress…

- Pois não sei… mas olha que o stress combate-se. É uma questão, em primeiro lugar, de teres uma atitude deliberada de recusa do stress, e, por outro lado, de teres a vida organizada, assim o stress baixa muito.

O pintor ficou a olhar para mim pensativo.

- Eu já tenho pensado muitas vezes que devia fazer qualquer coisa… a sério que sim. Às vezes um homem parece que vai morrer. Já pensei até em meter-me aí num curso qualquer para organizar melhor as coisas, sim… acredito que pudesse ser bom.

- Pois era! E depois as coisas vão evoluindo; quanto mais organizado estás, mais tens capacidade para recusar o stress, e quanto mais recusas mais te organizas… Estás a perceber?

- Sim, sim! Claro uma coisa puxa a outra…

- Pois puxa… Vamos ver o carro então?

- Vamos lá ver isso.

- Experimenta começar por almoçar em meia hora.

- Sim… vou experimentar…

sexta-feira, 27 de junho de 2008

O louco

Há certo louco que passeia o dia todo pelas ruas da minha cidade. É um tipo de cinquenta anos talvez. Anda pobremente vestido, normalmente a empurrar uma bicicleta para onde quer que vá, e a gritar, a praguejar, a berrar bem alto o que lhe vai na alma. Usa uma barba crescida, que apara de vez em quando, e é daquelas pessoas com quem alguns gostam de meter conversa, só para se rirem um bocado da loucura do senhor.

Há dias caminhava pela rua e vejo o dito homem aos berros como sempre, de braços no ar a gritar para o outro lado da rua.

- Benfica!!

Do outro lado estavam talvez quatro rapazes a dar resposta.

- Sporting!!!

- Benficaaaaaa!

- Spoooorrtiiinggg!

- BENFICAAAAAAAA!!!!!

- SPOOOOOOOOOOOORTIIIIIIIIIIIIING!!!

Ao passar perto dele, o homem parou e afastou-se para me deixar passar. Tinha um sorrisinho nos lábios.

- Gosto mesmo de os pôr a fazer figuras de parvo… - confidenciou a rir.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A tortuosa contradição do querer

Ela é uma bela e jovem mulher, nos seus vinte e cinco talvez, que trabalha nos bares ao fim-de-semana como actividade secundária. É jovem, bonita, saudável e veste-se de maneira que atrai os olhares. Serve bebidas com ar antipático e distante, foi a defesa que encontrou para os olhares lançados do lado de lá pelos clientes homens que se acumulam pela zona do balcão e que, naturalmente, não conseguem resistir à tentação de olhar e tentar ser mais simpáticos com ela do que seriam com outras. Diz que detesta esta profissão exactamente porque não suporta a forma como os homens olham para ela.

A certo cliente irrita-o aquele ar de mulher presunçosa, bonita mas trombuda que serve bebidas com o ar de quem não vê, não olha, não sorri e por maioria de razão não é capaz de conversar com ninguém, muito menos gracejar.

Tomou desde que a viu, e por instinto, a atitude deliberada de não olhar para ela, de desviar o olhar quando se cruzam, e de lhe falar com voz seca e autoritária como quem fala com um capataz.

Comeram-se uma noite destas.

Sociedade antónima

Trrrrimm... Trrrriiimmm...

- "Empresa X", bom dia...

(agora eu)

- Bom dia minha senhora, preciso talvez da sua ajuda... Ontem cheguei de manhã ao pé de um carro que eu tenho, um Renault Clio, e ele estava amolgado. Tinha no vidro um papel com dois números de telefone; um telemóvel e este número com que estamos a falar. O número de telemóvel é o YYYYYYYYY. Saberá dizer-me quem é esta pessoa?

- Esse é o número do meu colega F.....

- Posso falar então com esse senhor?

- Vou passar, espere um momento....

(espera)

- Está ?! (Ouvem-se máquinas ao fundo)

- Bom dia!

- Bom dia!

- É o senhor F?

- Sim, sim sou eu!

- Ligo-lhe por causa de um papel que encontrei no vidro de um Clio amolgado; tinha o seu número. Venho saber o porquê deste facto.

- Sim, sim! Pois fui eu que lhe amolguei o carro. Deixei o número para que você possa passar por aqui quando quiser para arranjarmos o carro. Há que fazer um orçamento, e depois tratamos disso. Sabe onde fica a empresa X?

- Não sei bem mas terei de procurar... Quando quer que eu apareça aí?

- Hoje vou estar fora, mas a partir de amanhã pode vir quando quiser.

- Está bem, irei amanhã, em princípio, ou então segunda, falaremos depois.

- Está bem. Distraí-me com a carrinha, é maior do que o carro e por isso não deu bem para ver o que estava a fazer...

- Pois, não se preocupe, os acidentes acontecem. Abraço e até amanhã.

- Seja. Até amanhã.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Carta da senhora reformada a quem enrabaram o cão

Lugar Sem Nome, 25 de Junho de 2008


Cara e excelêntissima vizinha,

É com consternação e humor preocupado que lhe dirijo esta carta, que já há vários dias deveria ter sido escrita, onde venho manifestar o meu repúdio e intensa revolta pelas actividades do seu Marecos.

Eu sei que o Marecos era um cão inteligente, forte, de boa aparência e que apesar de ser rafeiro rivalizava em postura e apresentação com qualquer Golden Retriever ou Labrador. Um cão muito bonito, e até muito simpático, sempre gostei muito dele, e ficava sempre muito contente quando o via saltar a grade do seu quintal para vir ter comigo e dar-me lambidelas nas mãos e no rosto, cumprimentos que eu retribuia com alguma goluseima que trouxesse, e houve tempos até em que me preocupava em ter sempre de reserva para o Marecos um pacote dos mesmos biscoitos que costumo comprar para o meu Lancelote, que como saberá é, ou antes era, um bonito pincher que me deu a minha querida e saudosa filha no dia do primeiro aniversário do falecimento de meu querido e saudoso marido.

Sempre gostei do Marecos e sempre lhe dei carinho e atenção, e houve alturas até em que o mantive em minha casa durante as férias da minha querida vizinha, quando ia para o Algarve, coisa que fiz sempre com muito gosto porque gosto de animais e não me sinto bem numa casa vazia, agora que todos partiram.

Desde há uns tempos vinha acontecendo que o Marecos vinha brincar com o Lancelote, e, outras vezes ia o Lancelote brincar com o Marecos, ora no meu quintal, ora no seu, mas sem eu nunca desconfiar das actividades a que eles se dedicavam.

Foi portanto com espanto que encontrei os dois, dentro da casota do Lancelote, dedicados à mais pecaminosa promiscuidade, sendo que os gritos do Lancelote eram tão altos que eu tive de descer ao terraço para ir ver o que se passava. O Marecos possuiu, e continuou a possuir durante semanas ou meses o meu Lancelote!

Eu não posso compreender isto, são coisas que não entendo e duvido que a minha vizinha possa compreender também como é que um cão como o Marecos, que teve sempre tanto sucesso junto das cadelinhas suas amigas - eu não sou de intrigas mas até acho que ele teve um caso com a cadelinha da nossa vizinha Adelaide, mas não lhe diga nada - poderá ter virado o seu instinto animal para um cãozinho tão simpático e feliz como era o Lancelote.

É uma tristeza que me fica. O Marecos maltratou, estropiou, mordeu, rosnou e atemorizou o meu Lancelote. Nunca esperaria isso do seu cão minha amiga... E não lhe perdoo.

Agora que o Marecos morreu atropelado, o que imagino lhe cause também muita tristeza, o Lancelote anda muito em baixo, sem apetite, e desde há vários dias que percebo que passa o tempo no seu quintal, provavelmente à procura do Marecos.

Esta carta foi escrita para lhe pedir o favor de me trazer o Lancelote que me faz muita falta por ser tão boa companhia e convidá-la desde já para vir tomar um chá cá a casa para pormos as conversas em dia. Venha logo que possa, sabe bem que as minhas portas estão sempre abertas para si.

Os melhores cumprimentos para a minha vizinha e para o senhor arquitecto.


Alzira