O sr. T é o gerente da dependência bancária da minha cidade.
Não terá ainda quarenta e cinco anos. Aparece todos os dias, meticulosamente trajado de fato comprado num qualquer outlet de grande dimensão, e o escanhoado perfeito de quem dedicou trinta minutos da sua manhã a manobrar, com destreza e atenção, a Mach 3 pelas curvas do seu rosto, pelas patilhas milimétricas, e até pelas zonas atrás das orelhas e do pescoço, onde os pelos no seu crescimento vão dando ao homem moderno um certo ar de desleixo e falta de cuidado.
Não é certamente o caso do sr. T, que é o tipo de pessoa que não deixa nada ao acaso.
Quando era mais mais novo esteve tentado a tirar direito, que o pai lhe pagava os estudos mas, num acto de rebeldia e inolvidável audácia, pelo menos à escala da sua pessoa, resolveu deixar de lado uma possível carreira brilhante nos tribunais e dedicar-se à banca. Porque o movimento - o borbulhar do dinheiro - o fascina, costuma explicar às pessoas nas conversas informais, nos almoços de negócios - "o capitalismo é um jogo viciante..." - costuma afirmar entre duas imperiais e enquanto se banqueteia com umas amêijoas à Bolhão Pato.
Tudo na sua atitude é meticuloso. A forma como se veste, como se apresenta, o formalismo profissional com que atende o telefone e até a forma estudada de sorrir.
Mas quem o conhece sabe que por trás do seu bigode de Errol Flynn está um homem que gosta de se divertir. Não é grande conversador, mas nas jantaradas fala com paixão e desenvoltura das grandes questões financeiras e dos negócios do seu banco, como se fossem decisões suas. E quando, duas garrafas de Jameson mais tarde, se dirigem para uma das casas de putas da moda, o sr. T transfigura-se e vem ao de cima a verdadeira personalidade vibrante e erótica dos nativos de escorpião. Em algumas dessas noites, já foi visto a levar duas mulheres para o quarto e até a praticar actos libertinos à vista de toda a gente. Quando se trata de putas, o sr. T sente-se um excêntrico banqueiro milionário.
E nas manhãs seguintes, ao tocar das 8h 30m, é vê-lo a entrar à porta do banco, impecavelmente vestido, de pasta na mão, a cumprimentar toda a gente e a espalhar pelo ar um certo aroma antiquado de Old Spice e de mediocridade.
O sr. T entrou na sala de reuniões com os meus papéis na mão e com um sorriso escancarado.
- Viva Peter! O seu empréstimo para compra de habitação foi pré-aprovado!
Eu fingi um certo ar de contentamento como se isso fosse uma coisa surpreendente e reservada apenas aos clientes especiais do banco.
- Agora - continuou - teremos de esperar pelo relatório do avaliador para confirmar o valor do imóvel e termos então a certeza de estarmos a trabalhar dentro dos valores apropriados para o empréstimo.
- E quanto tempo poderá isso demorar?
- Talvez quinze dias. Eles têm andado um bocadinho atrasados. Mas quinze dias deve ser suficiente, mais quinze dias para vir da central a autorização definitiva. Daqui a um mês deverá estar em condições de fazer a escritura da casa.
A coisa pareceu-me bem e ficámos um pouco a conversar sobre o processo de compra de casa, condições do empréstimo, taxas de juro...
- Diga-me Peter... Vai casar?
- Não. Não estou a pensar casar.
O sr.T olhou-me com um certo ar suspeito de quem lhe tinha escapado algo importante.
- Você nunca casou pois não? Não tem filhos?
- Não. - respondi já surpreendido com aquelas perguntas sobre a minha vida pessoal.
- É que isso traz-nos uma pequena contrariedade...
Eu olhei para ele sem perceber e fiquei na expectativa.
- É que nesse caso o Peter vai precisar de fiador... - foi dizendo o sr. T, chegando-se mais de perto, em jeito de confidência.
- Fiador? - perguntei eu no mesmo tom.
- Sim... fiador... não é nada pessoal, compreenda... são regras do banco...
- Mas... regras? Regras porquê? Porque é que eu, pessoa formada e de boa saúde, preciso de ter fiador? E além disso onde é que eu vou encontrar um fiador nos dias de hoje? Hoje não há condições para alguém de inteligência mínima ser avalista! Vocês dos bancos reservam-se a todos os direitos! É a reserva de propriedade da casa... Temos de pagar seguro para garantir o pagamento do empréstimo... Querem fiador para quê? As garantias que têm não vos chegam?
O sr. T fez um ar de quem lamenta.
- Compreenda Peter... Eu não fosso fazer nada... Se você fosse casado...
- Se fosse casado era mais honesto? Ou tinha mais condições para pagar? Não percebo.
O sr. T resolveu-se a aventar uma explicação que não estava habituado a dar.
- Não é isso... Veja se entende. O banco considera as pessoas solteiras um investimento de maior risco. São pessoas mais independentes e imprevisíveis. Tanto podem estar aqui hoje, como amanhã podem fazer viagens para o Brasil, se bem me entende...
Eu olhava para ele com ar de evidente reprovação.
- Os solteiros - prosseguiu - são pessoas difíceis de prever e de seguir. São pessoas que não têm cá ninguém que os prenda. Podem com mais facilidade dar um tiro na cabeça e deixar esta vida, por exemplo. E quem fica a perder? O banco...
Eu fiz um ar de quem estava a seguir o raciocínio.
- Sim, entendo o que quer dizer. Para o banco, os solteiros são feitos da mesma massa de que são feitos os bombistas suicidas...
- Sim... No fundo é isso... - assentiu o sr. T, contente por me ter feito ver o problema e a óptica do banco.
- Sim é verdade... - respondi com ar de quem partilha a idéia. E chegando mais para o pé dele - ...mas então lhe digo que, sendo assim, será mais prudente para a sua saúde e a dos seus colegas que me baixe os juros e deixe de exigir fiador...
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