domingo, 29 de junho de 2008

O princípio de Peter

Fumar um cachimbo ao vento tem as suas dificuldades práticas. A atmosfera em movimento faz com que o cachimbo arda mais depressa do que seria normal numa massa de ar estática e faz com que o cachimbo possa aquecer demais ou que o tabaco queime de forma irregular. É melhor um cachimbo de fornilho estreito e fundo, para que a área do tabaco em combustão seja menor, e diminuir de alguma forma estes inconvenientes.

Havia em Douglas um individuo que gostava de se dirigir às falésias, normalmente em dias nebulados, para fumar longamente um já velho mas magnífico billiard de linhas soberbas e discretas, que encontrara um dia a preços ridículos numa feira de velharias, no seu lugar favorito que era uma varanda sobre o mar, talvez cem pés acima da linha de água, e cujo o acesso difícil se fazia apenas a pé ou a cavalo ao longo de cerca de uma milha de carreiros estreitos e sinuosos, entre urzes encravadas nas pedras irregulares do terreno calcário.

Nunca se soube bem quem era aquele homem e que ocupação tinha. Aparecia raramente na cidade e vivia numa casa isolada nas redondezas. Poderia ser escritor, era de poucas palavras e não gostava muito de sair. Há quem se lembre de uma mulher, muito mais nova do que ele, escandinava talvez, que viveu com ele alguns anos. Ela saía, era vista na cidade, principalmente na praça dos frescos, e chamava a atenção pela beleza serena e o olhar profundo e claro.

Mas dizem que há já muito tempo que essa senhora desapareceu, não foi mais vista, e o indivíduo de que falamos terá vivido desde então apenas só. Não se lhe conheceu mais ninguém.

Os raros passeios que dava eram até à falésia. Caminhava lentamente pelos carreiros, apreciava e ar húmido e marinho que respirava de narinas e peito bem abertos. Levava o tempo que fosse preciso para chegar à varanda donde tinha uma visão imponente do mar em tons de verde e cinza a fustigar as falésias no seu movimento perpétuo de água e espuma que se eleva alto para depois cair num fragor surdo que parece vir das entranhas da terra.

Sentava-se.

Costumava ficar a olhar para a paisagem grandiosa e rude à sua volta o tempo que fosse necessário até voltar a sentir a respiração regulada e o coração no seu bater normal.

Começava então o procedimento minucioso e propositadamente demorado de preparar o cachimbo para ser fumado. Fumar cachimbo é um acto de ociosidade deliberada. Não há um qualquer momento da sua preparação e posterior desfrute que proporcione pressa e que possa ser feito num sentimento de urgência. É uma afronta pessoal do individuo contra a agitação da vida.

Começa-se por observar minuciosamente o cachimbo; aprecia-se a cor, o aspecto, o polimento, toca-se, sente-se a textura inconfundível do briar na palma da mão e nos dedos, e procuram-se os sinais de que o tempo tem passado sobre o nosso fiel companheiro.
Depois raspa-se, limpa-se o fornilho, que na verdade já foi limpo no fim da utilização anterior, dos restos imaginários de alcatrão e tabaco queimado. Sopra-se, cheira-se, aprecia-se o aroma, limpa-se, mas nunca, nunca, nunca se deve bater um cachimbo.

Quando estamos finalmente convencidos de que o cachimbo está limpo, tiramos uma porção de tabaco que se põe ao ar. Devemos separar os filamentos e procurar defeitos ou corpos estranhos que possam prejudicar a qualidade do fumo e, neste tempo de observação minuciosa, damos também oportunidade a que a humidade do tabaco se possa libertar, ficando o tabaco um pouco mais seco e uniforme, o que fará com que queime de uma forma mais agradável.

O enchimento é sempre uma tarefa delicada. Normalmente faz-se por camadas sobrepostas. Enche-se o cachimbo até cima com tabaco e calca-se até ficar a ocupar talvez metade do volume do fornilho. Depois volta-se a encher o espaço que sobra e calca-se de novo. Volta-se a repetir a tarefa até o tabaco encher por completo o fornilho e apresentar uma estrutura macia mas consistente.

Quando temos o cachimbo preparado, estamos então em condições de nos recostar e desfrutar do primeiro fumo. O primeiro fumo é um fumo preparatório, serve só para preparar o tabaco para uma queima regular. Acende-se com um fósforo ou um isqueiro e espalha-se uma chama abundante por toda a superfície do tabaco. Chupa-se, lentamente, sempre lentamente, e deixa-se que a brasa se apague. Calca-se de novo a cinza sobre a sua cama de tabaco e dá-se fogo novamente. Poderemos então desfrutar de um fumo lento e regular, feito ao ritmo das horas vagas e das ondas a rebentar na falésia. Uma hora talvez, em que o homem se remete ao mais profundo de si mesmo num acto de puro egoísmo e prazer.

Havia muitos anos já que o tal senhor fazia aquele caminho até à falésia. Já muitas vezes fizera os carreiros pedregosos e conhecia as pedras de cor.

Sentou-se muitas vezes por ali, a fumar e a ver o mar, enquanto dentro de si formava uma ideia que foi crescendo e fortalecendo com o tempo, até tomar a forma de uma decisão inabalável. "Não".

Não, ele não iria morrer de velho e senil. Se não lhe tinham dado a escolher o nascer ou não, nem o dia, nada, então sentia-se no direito de escolher o dia do fim. É uma questão de justiça. Com o tempo foi formando a ideia que chegaria um dia em que olharia para si mesmo e decidiria se ainda havia razões para continuar, se as suas condições físicas e psíquicas justificavam mais uma viagem de volta a casa.

Hoje sentou-se, como fez já muitas vezes, e acendeu o cachimbo. Nada o prende, nem ninguém, agora já não. Fumou o cachimbo e deixou-se ficar a olhar o mar duro e bruto que vai moendo as rochas lentamente. Hoje não lhe apetece ir para casa, não lhe apetece fazer os carreiros das urzes de novo. Respira fundo. A luz é clara. O ar está fresco, numa atmosfera suspensa. Respira fundo, enquanto limpa o cachimbo minuciosamente. Guarda o cachimbo num bolso interior do casaco enquanto se levanta e observa a espuma a rebentar no fundo rochoso. Respira fundo. Olha para o caminho das urzes. Respira fundo, e precipita-se no vácuo.

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