É uma hora difícil. Este período que não noite nem é dia, em que não estamos ainda no espírito nocturno do descanso, nem já é dia para estarmos focados nos trabalhos que temos em mãos. É a hora em que o espírito se vai adaptando a custo à sua nova situação, mantendo, no entanto, uma vigilância preocupada e pensativa nos assuntos que aos poucos se vão desvanecendo e sendo adiados para amanhã.
Conta-se que certo ginecologista estava a esta hora, ainda, no seu consultório a acabar os últimos assuntos pendentes. Já tinha tirado a bata e estava de mangas arregaçadas, com a gravata folgada no nó para lhe dar uma maior sensação de conforto; estava já no tal espírito transitório de quem se prepara para fechar a porta e ir descansar.
Dirigiu-se a uma pequena garrafeira que tinha no canto do consultório, serviu-se de um whiskey e sentou-se, disposto a acabar aqueles restos de papelada que lhe sobravam na secretária.
Tocaram à porta.
Um pouco contrariado lá resolveu ir ver quem era e deparou com uma jovem senhora, que, preocupada, lhe explicou a sua situação.
- Boa noite… Desculpe-me bater-lhe à porta a esta hora. Eu tinha uma consulta marcada para hoje mas não pude vir porque tive contratempos no emprego. Acontece que por motivos familiares não vou poder voltar durante duas ou três semanas e gostava, e precisava, de ser consultada. O senhor está ainda em condições de me receber?
O médico hesitou. Depois lá assentiu:
- Entre… eu estava, de facto, a acabar… mas seja, venha comigo.
A jovem agradeceu e seguiu o médico escada acima até ao gabinete.
- Estava já em traje de saída… - sorriu o médico – sente-se, esteja à vontade. Estava a acabar estes papéis, também já não falta muito. Aceita qualquer coisa para beber enquanto acabo isto? Fazemos a consulta a seguir…
A jovem aceitou e ficaram um bocado a conversar, enquanto o médico fazia os seus rabiscos. Ficaram assim um bocado, a conversar descontraidamente, trocando impressões e contando pequenas coisas, a falar da vida de cada um, naquela descontracção de quem está a sentir que o dia chegou mesmo ao fim.
Deixaram-se estar, até que a conversa foi interrompida por um ruído de chave a entrar na fechadura da porta, o ruído de alguém a entrar e, finalmente, o barulho de uns sapatos de salto a subir as escadas.
O médico empalideceu, algo lhe tinha escapado, de facto…
- Depressa! – disse ele para a jovem – é a minha mulher… Dispa-se e abra as pernas ali na marquesa! Ela não nos pode ver assim…
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário